terça-feira, janeiro 03, 2006

Mourinho e o calcanhar

Como nota prévia, e tendo em conta a polémica sobre os plágios que corre na blogoesfera, desde já os informo que esta longa reflexão sobre o futebol é totalmente inspirada no livro Sentimentais e Selvagens do escritor espanhol Javier Marías. O livro, que reúne vários textos sobre futebol do mais célebre dos escritores espanhois vivos, é uma obra prima. Repito, é uma obra prima. No fundo, o que se esperava de quem considera um "descanso" escrever sobre futebol. Mas fazendo curta uma longa história, ataco desde já o lead deste post: eu não gosto do Mourinho. E as razões da minha falta de gosto pelo "special one" são muitas e profundas. Vamos a elas.
Primeiro, acho que o treinador português inverteu por completo a equação sagrada da minha infância. Eu quando jogava matraquilhos com o meu primo Simão (é por isso que o Sporting-Benfica será sempre mais importante que um Sporting-Porto ou um Porto-Benfica) sabia de cor o nome de todos os meus jogadores e dos jogadores dele. Nos matraquilhos não havia nomes de treinadores. E no futebol de rua (as balizas eram os espaços entre as rodas da frente e de trás dos carros) também não havia treinadores. Mais, não me lembro de alguma vez ter cantado num estádio um nome de um treinador e não faço a mínima ideia de quem era o treinador do Sporting quando ganhámos 7 a 1 ao Benfica (seria o Burkinshaw?). Lembro-me, isso sim, que o Manuel Fernandes marcou quatro golos e o Mário Jorge jogava a extremo-esquerdo. Ou seja, o mais obscuro dos jogadores vinga mais na minha memória que o mais famoso dos treinadores. Ou melhor, vingava. Parece-me que essa era a ordem natural das coisas. Era. Fenómenos como a canção "There is only one Mourinho", a fixação pelo seu sobretudo e o culto do "special one" radicaram-se e resumem-se numa só palavra: parolices.
Segunda razão pela qual me desgosta profundamente Mourinho: ele altera outra das minhas equações futebolísticas sagradas - a ideia que o futebol parte sempre do zero, como constatou sabiamente Marías. Este é o jogo onde "nunca se considera já ter tido êxito, antes se exige ( e os próprios jogadores exigem-no a sim mesmos) ganhar o encontro seguinte também, como se começasse sempre a partir do zero, analogia do resultado inicial de todos os jogos". Melhor ainda: "Ter sido ontem o melhor já não interessa hoje, para não falar de amanhã. A alegria passada não pode fazer nada contra a angústia presente, aqui não existe a compensação da recordação (...). Portanto, também não há durante muito tempo tristeza ou indignação, que de um dia para o outro podem ver-se substituídas pela euforia e santificação". Agora olhem como eu olho o futebol: a soma da angústia, tristeza, alegria, euforia, santificação e redenção. Tirem-lhe tudo isso e terão o que Mourinho vos oferece: vitórias e a garantia que não parte tudo do zero. O que é que seria se eu fosse para Alvalade com a certeza que ganharia ao Benfica. Seria um longo bocejo. Nada mais.
Terceira razão, porque o post já vai longo, para não apreciar Mourinho. A sua identidade ultrapassa o talento do futebolista, a única razão no mundo para se encher um estádio. Este antigo jogador medíocre de futebol, que ganha a vida à custa do talento dos outros (os jogadores), não gosta de futebol. Falo com propriedade porque vi os últimos quatro jogos do Chelsea. Este é um treinador que se indignou com Joe Cole porque este preferiu fazer um mau passe a Crespo do que chutar à baliza. Tudo bem, também acredito, como Marías, que o futebol tem demasiados jogadores que não sabem chutar à baliza (nos meus jogos toda a gente sabia chutar à baliza). Agora o que não aceito é que Mourinho dê uma descasca em Cole porque este tentou fazer um passe de calcanhar. Já não basta construir uma equipa disciplinada (eu odeio a disciplina e é por isso que gosto do Barbosa, Romário e Maradona) e sem alma (um amontoado de jogadores estrangeiros que nem sequer sabem que Chelsea é um bairro aristocrata de Londres, com a excepção dos apaixonados Lampard e Terry, que, apesar dos talentos medíocres, me fazem pensar no Rei Artur), Mourinho também não permite os toques de calcanhar. Isto é de facto, insuportável.
Passo ao exemplo da quinta final europeia ganha pelo Real Madrid (7-3 ao Eintracht Frankfurt). Marías explica como o mítico Di Stéfano viu a final: "O treinador às vezes ficava nervoso e recomendava-me que não jogasse de calcanhar, porque contagiava os companheiros; e que se fosse só eu a dar toques de calcanhar, tudo bem, mas se toda a equipa se pusesse a fazer isso era suícidio; ora, com os diabos, também tínhamos de nos divertir, não é verdade?" Noutra história antológica contada por Marías, Di Stefano explica ainda que, em alguns jogos oficiais, ele e Gento passavam o tempo todo a fazer passes de calcanhar. A única contra-indicação é que a equipa perdia muitas bolas: "Mas a verdade é que as recuperávamos depois..."
Marías explica, finalmente, o que lhe apetece fazer aos treinadores que têm como máxima o já célebre «para ganhar, primeiro é preciso não perder»: "Vá à fava, homem, não me chateie". Eu, pensando no Special One, não escreveria melhor.

(actualizado)

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Moral da história....
tens o Rui Jorge que mereçes

2:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eu também me enervo com os toques de calcanhar, sobretudo dos que não sabem dar toques de calcanhar...

3:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

E não é que na gramática são mais do que toques, são pontapés mesmo! Há muita gente a precisar de voltar à primária...

4:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mas não o FTA que segue para o estrelato blogosférico.

10:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Xico:
o treinador dos 7-1 era o Manuel José.
Nesse ano o Benfica foi campeão.
1 abraço
JPPinto

6:09 da tarde  
Blogger FTA said...

Seja bem vindo, senhor José...

6:13 da tarde  

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