Crime e castigo (arquivo)*
Nenhuma análise resiste tão pouco ao tempo como a análise futebolística. É um problema da própria natureza do jogo. Os jornalistas sabem, por exemplo, que nenhum currículo é feito de glórias passadas. Ontem, pode ter-se escrito a notícia do ano. Amanhã, ninguém se lembra dela. No futebol, o mesmo fenómeno é elevado a uma potência infinita. Podemos ganhar ao Benfica mas se perdermos contra o Gil Vicente, ninguém se lembrará do resultado derby. Estamos assim perante um fenómeno que constitui, como lembrou o escritor espanhol Javier Marías, o centro de tudo: os jogos de futebol começam sempre a zero.
E, no entanto, nem sempre é assim. A bola gira e os jogos até parecem estar por estrear. O problema é que algumas vezes, muito raras, a recordação é demasiado pesada para olhar tudo como se fosse novo. E este é o verdadeiro crime: inflacionar a memória com um episódio demasiado amargo para podermos reconhecer a pureza original.
E eis que chego ao norte desta crónica: nenhum crime terá sido mais cruel e impiedoso que o praticado por Luisão durante a época passada. Qual Raskolnikov, a personagem principal do livro de Fyodor Dostoevsky a quem roubo o título desta crónica, o central do Benfica assassinou a ingenuidade dos sportinguistas com uma cabeçada apenas. Não usou machados, nem roubou os pertences. Usou a sua altura e roubou um título que devia ser, qualquer pessoa que goste de ver futebol o reconhece, nosso. As consequências do crime foram muito além do jogo. Já apunhalados, não tivemos sangue suficiente para ganhar a UEFA. Moribundos, iniciámos a época sabendo que a morte nos aguardava em cada jornada. Mudámos tudo como uma mãe arruma num caixote os pertences do filho desaparecido: presidente, treinador e jogadores foram empacotados para que não nos lembrássemos mais da noite trágica em que mataram a nossa infância. E a dor, a dor de não começarmos a vida do zero, ainda assim, não desaparecia.
Não notámos sequer que a culpa do Raskolnikov de serviço começava a fazer girar a roda da lei das compensações. Como no livro, Luisão, um bom homem e um bom central, não era mais o mesmo. Começou com uma simples insónia aquilo que se tornou um pesadelo diário. Luisão não conseguia viver com a sua culpa. Com o seu pecado: a cabeçada que matara o sportinguismo. Até ao dia em que se viu perante o algoz. Na sala de interrogatórios da Luz, ainda tentou, pateticamente, negar o crime; arrastou-se em desculpas até à entrada da área. Até que finalmente, e perante a poderosa técnica do investigador Liedson, se prostrou perante a justiça. Confessou-se homicida. Fez-se o golo e castigou-se o criminoso.
Com uma pequena diferença em relação à obra do génio russo. Não foi Luisão que se redimiu, foram as vítimas que encontraram a paz. Os jogos voltaram a partir do zero.
*Neste jogo,na Luz, Liedson agarrou a bola na meia-esquerda fintou Luisão e marcou golo. Marcaria outro até ao final do jogo
E, no entanto, nem sempre é assim. A bola gira e os jogos até parecem estar por estrear. O problema é que algumas vezes, muito raras, a recordação é demasiado pesada para olhar tudo como se fosse novo. E este é o verdadeiro crime: inflacionar a memória com um episódio demasiado amargo para podermos reconhecer a pureza original.
E eis que chego ao norte desta crónica: nenhum crime terá sido mais cruel e impiedoso que o praticado por Luisão durante a época passada. Qual Raskolnikov, a personagem principal do livro de Fyodor Dostoevsky a quem roubo o título desta crónica, o central do Benfica assassinou a ingenuidade dos sportinguistas com uma cabeçada apenas. Não usou machados, nem roubou os pertences. Usou a sua altura e roubou um título que devia ser, qualquer pessoa que goste de ver futebol o reconhece, nosso. As consequências do crime foram muito além do jogo. Já apunhalados, não tivemos sangue suficiente para ganhar a UEFA. Moribundos, iniciámos a época sabendo que a morte nos aguardava em cada jornada. Mudámos tudo como uma mãe arruma num caixote os pertences do filho desaparecido: presidente, treinador e jogadores foram empacotados para que não nos lembrássemos mais da noite trágica em que mataram a nossa infância. E a dor, a dor de não começarmos a vida do zero, ainda assim, não desaparecia.
Não notámos sequer que a culpa do Raskolnikov de serviço começava a fazer girar a roda da lei das compensações. Como no livro, Luisão, um bom homem e um bom central, não era mais o mesmo. Começou com uma simples insónia aquilo que se tornou um pesadelo diário. Luisão não conseguia viver com a sua culpa. Com o seu pecado: a cabeçada que matara o sportinguismo. Até ao dia em que se viu perante o algoz. Na sala de interrogatórios da Luz, ainda tentou, pateticamente, negar o crime; arrastou-se em desculpas até à entrada da área. Até que finalmente, e perante a poderosa técnica do investigador Liedson, se prostrou perante a justiça. Confessou-se homicida. Fez-se o golo e castigou-se o criminoso.
Com uma pequena diferença em relação à obra do génio russo. Não foi Luisão que se redimiu, foram as vítimas que encontraram a paz. Os jogos voltaram a partir do zero.
*Neste jogo,na Luz, Liedson agarrou a bola na meia-esquerda fintou Luisão e marcou golo. Marcaria outro até ao final do jogo
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